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Non dubium pro libertate

"If liberty means anything at all, it means the right to tell people what they do not want to hear." George Orwell

Non dubium pro libertate

"If liberty means anything at all, it means the right to tell people what they do not want to hear." George Orwell

Ayuso como exemplo para a salvação de Sánchez

12.05.21

Tanto o PSOE como o Podemos perderam - e à grande -, mas esta vitória de Ayuso pode muito bem ser um bote de salvamento para Pedro Sánchez.

O Partido Popular de Madrid engoliu o Ciudadanos (que fazia parte da anterior coligação de governo) e venceu categoricamente as eleições da Comunidade de Madrid. O surpreendente disto tudo não é a vitória do Partido Popular ou a queda do Ciudadanos, ambos eram, até certo nível, esperados. O que talvez não fosse tão esperado era o efeito dominó que trouxe em relação ao Podemos, com a demissão de todos os cargos de Pablo Iglesias - apesar de ele ter dito que o faria -, e a aflição de Sánchez e do PSOE – que, tal como o Podemos, ficou atrás do Más Madrid nas intenções de voto.

Quer se queira que não, a vitória de Auyso influencia o panorama nacional. A vitória da nova sensação da direita espanhola não só fez com que o Podemos perdesse a sua grande figura dos últimos anos, como permitiu certa limitação no crescimento do VOX na comunidade madrilena – apesar de tudo, o VOX só teve mais um eleito quando comparado com 2019. Mesmo com este resultado fraquíssimo do PSOE, este afastamento de Pablo Iglesias pode muito bem ser a chave de ouro de Sánchez para reformular a política do partido e, aos poucos, afastar-se do radicalismo do Podemos e ganhar outro ar e vigor.

Ao demitir-se de todas as funções, o líder carismático do partido da esquerda deitou por terra alguma da influência do partido sobre o governo espanhol. É certo que o Podemos não vai desaparecer nem perder toda a influência que tem, muito menos até às próximas eleições, mas Sánchez tem aqui uma oportunidade de ouro para ocupar algum desse vazio e fazer outro tipo de política menos alicerçada no Podemos e mais centrada na história do seu partido. Aliás, já existem motivações no partido para isso mesmo. O ex-Presidente do Governo espanhol e líder histórico do PSOE, Felipe González, deu voz a uma parte do partido que pretende «uma reflexão interna» dentro de portas após os resultados delicadíssimos de Madrid.

Sánchez tem, como nunca, a oportunidade de virar a agulha e focar-se numa mensagem clara, estratégica, mais virada ao centro-esquerda espanhol e ligada à vontade das pessoas ao invés de um discurso puramente ideológico que ajudou à queda do parceiro de coligação nas eleições de Madrid. Tem aqui a oportunidade de, ironicamente, seguir o exemplo de Ayuso e limitar a influência dos extremos e voltar a retirar importância ao Podemos, reafirmando a importância do PSOE a nível nacional.

A questão que se levanta é: quer Sánchez mesmo acabar com o radicalismo em Espanha ou quer apenas ficar no governo? Seja qual for a resposta, e com a ascensão do PP, parece-me que a única alternativa para o PSOE – e para Espanha - é a moderação do PSOE. Veremos se Sánchez consegue perceber isso a tempo.

 

Pedro

 

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                  Europa Press

 

Até quando vamos continuar cegos?

09.05.21

Desde que tomou posse como Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen tomou como desígnio europeu o aperfeiçoamento da “Europa Geopolítica” que, em termos latos, significa dar mais coerência e importância à União no mundo. Até aí, tudo bem. O problema é que, desde aí, a União não tem tido se não problemas atrás de problemas na gestão dos casos que se lhe apresentam.

É verdade que não vem de hoje e não tem tudo dedo da Presidente Ursula, basta lembrar os casos da Geórgia e da Ucrânia, mas há casos actuais que mostram a fragilidade europeia, nomeadamente – e entre outros – o caso da compra das vacinas, o da Turquia - com a aparente complicada relação entre a Comissão e o Conselho a ser aproveitada por Erdoğan para desacreditar a União -, e o mais importante e actual que é o da “diplomacia das vacinas”. Sendo a União o bloco que mais exporta vacinas, e isso é um facto, e se fazemos um bom trabalho, por que razão continuamos calados, sem promover aquilo que fazemos? Ninguém sabe muito bem. Enquanto isso, outros países aproveitam as vacinas para influenciar o cenário internacional e nós damos tiros nos pés.

Se formos analisar, tanto a China como a Rússia têm aproveitado para alavancar a sua influência internacional - e tem resultado. São muitos os casos do avanço, desde o material médico no início da pandemia até às vacinas russa e chinesa que andam espalhadas por esse mundo fora. Além disso, há ainda quem use as vacinas para tentar esconder crimes. De forma chocante e preocupante – e que de alguma forma passou despercebida, sabe-se lá porquê - um ministro checo, alegadamente, aceitou “enterrar” evidências de um ataque russo em 2014 tendo como contrapartida doses da vacina russa para o combate ao covid-19.

Se esta influência não fosse clara – e é – estava aqui um exemplo da importância da “diplomacia das vacinas”. Esta influência clara fez com que tanto a UE como os EUA já percebessem o esforço chinês e russo no xadrez mundial. O problema é que, mais uma vez, a percepção vem atrasada, amorfa e pachorrenta. Para responder a esta influência, os EUA mudaram a sua posição e começaram a pensar na suspensão do processo de patentes para, teoricamente, facilitar a produção de vacinas. Sem estratégia própria europeia e com a mudança de posição dos EUA em relação a este assunto, o Berlaymont parece estar tentado a seguir o mesmo caminho.

Se é uma boa decisão ou não, não sou eu que vou dizer. Aliás, não é esse o tópico que trato. O que considero importante perceber aqui é a tendência. Mais uma vez, e para quem quer uma “Europa Geopolítica”, a União não mostra nenhuma estratégia de influência no mundo no que toca à promoção da distribuição de vacinas e chegámos até ao ponto de deixar que a Rússia chantageie um ministro de um país europeu. A juntar a isto, anda ainda a reboque da posição dos EUA.

Não me interpretem mal, eu sou bastante favorável a uma cooperação mais próxima com os EUA, mas isso não pode impedir que a União não use a sua influência na distribuição de vacinas para se projectar internacionalmente, assim como, por outro lado, não podemos simplesmente aceitar que Rússia influencie um ministro europeu com a oferta de vacinas em troca de “enterrar” ataques passados sem que nada se diga ou faça - com a agravante do historial da Rússia com a UE.

A “Europa Geopolítica”, parece-me,  tem muito caminho pela frente. Não só precisamos, de uma vez por todas, de definir a linha onde dizemos “já chega” e estabelecemos um limite até onde aceitamos ser humilhados, como precisamos de pensar seriamente numa estratégia para nos “vender” melhor lá fora. É claro que não é só isto que importa, mas é um ponto de partida. Mais uma vez deixamos uma oportunidade passar sem a aproveitarmos. Hoje, dia da Europa, é um bom dia para começar a abrir os olhos. Até quando vamos continuar cegos?

 

Pedro

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Acto de contrição

08.03.21

  À medida que fui estudando a história de Portugal, sempre tive a percepção que Portugal é um país particularmente afastado, talvez por cultura ou, quem sabe, por necessidade, da arte de reflectir. Não digo, com isto, que não haja quem o faça – afinal, há até quem trace planos genéricos com propostas genéricas sobre as generalidades da governação – mas, como um todo, parece-me que sempre fomos dados à arte de atirar para trás das costas o passado e, como consequência, empurrar com a barriga o futuro.

  Para perceber isto, não é preciso ir muito longe. Dou apenas dois exemplos:

  O primeiro exemplo foi-me lembrado, há uns dias, com a discussão da história das FP25. Em Portugal, no país já democrático, existiram ataques armados que ditaram o pânico e o fim de vida de pessoas. Até há muito pouco tempo, este assunto pouco ou nada se discutiu. Pelo que sei e me recordo, este assunto também não é ensinado nas escolas. Isto chamou a minha atenção e penso que, para muita gente, estimulou maior pesquisa do assunto. Ainda assim, passados uns dias parece que voltou a cair no esquecimento. De facto, não conseguimos olhar a nossa história nos olhos, perceber onde errámos e daí tirar as devidas consequências como gente crescida. É, de facto, uma pena.

  O segundo exemplo é mais actual e é a própria gestão da pandemia que temos entre mãos. Tenho evitado comentar sobre isto porque, não sendo um homem da ciência, tendo a deixar para os que sabem o devido comentário. Todavia, não falando particularmente da doença, parece clara a falta de planeamento do nosso governo. Dir-me-ão, então, que é impossível fazer planos a longo prazo, que tudo isto é novo e que, por isso, tem que se lidar um dia de cada vez. E têm razão. Mas o que se pede aqui não é um planeamento a longo prazo. Muito menos é algo que afecte a actuação no dia-a-dia no combate à pandemia. Aquilo que falo, e desejo, é apenas que exista a capacidade de reflectir sobre o que vivemos e, agora com a “vitamina” a chegar, arranjar uma forma de perceber tudo aquilo que nos atingiu e planear o futuro para que milhares de pessoas em situação de desespero não mais continuem nessa situação (e basta ver o achincalhamento das pessoas que ousam pensar no assunto).

  Podia dar muitos mais exemplos mas penso que estes dois chegam para perceber aquilo que vos tento transmitir. Portugal, enquanto país, parece ter aversão ao acto de reflectir. Pouco pensamos, não debatemos, não montamos uma estratégia coesa e baseada nessa reflecção e, mais grave ainda, descartamos muita da discussão do nosso passado – e consequentemente do nosso futuro - para quezilas entre vítimas e agressores, entre vitoriosos e perdedores. Não somos capazes de meter a mão na consciência e compreender que enquanto não fizermos todo este debate de forma honesta para espantar os fantasmas do passado não vamos conseguir enfrentar o presente e, muito menos, o futuro.

  Se não conseguimos sequer ter uma discussão sobre o nosso passado como esperam conseguir olhar para o futuro? O estado do nosso país mostra que, até hoje, não conseguimos. O futuro não logra nada de bom. Talvez seja tempo de um Acto de Contrição.

 

Pedro

 

Vitória de Marcelo: o que pode ser e o que pode significar

25.01.21

Para começar, compreende-se que as eleições Presidenciais ganham contornos diferenciados de todas as outras eleições. Se é certo que, em eleições Autárquicas e Europeias se conseguem transpor algumas possíveis consequências dos resultados para se antever umas futuras Legislativas (e, mesmo nas Autárquicas, cautela nisso), não é tão certo que o mesmo possa acontecer em eleições Presidenciais. Por uma razão simples: 1- os partidos comportam-se de maneira algo diferente; 2- o candidato precisa de se comportar de maneira diferente; 3- em relação a estas eleições em específico, Marcelo Rebelo de Sousa forçava todas as eventuais diferenças que apontei anteriormente. Assim, poderemos discutir a forma como os partidos políticos se comportaram. Há algumas sérias críticas a fazer - desde aqueles que não souberam aproveitar a oportunidade de ouro que tiveram (PSD), aos que não conseguiram demonstrar qualquer prova de vida (CDS), e até mesmo aos que saíram algo embaraçados (BE e PCP). Da mesma forma, há bons elogios – como aqueles que conseguiram passar a sua mensagem, mantendo uma lógica de refresco nos atores políticos que vão impulsionando (IL). Por fim, fica o Chega, que requer uma discussão muito mais aprofundada (para a qual as redes sociais, definitivamente, não servem), mas que não é o objetivo deste texto.

               Assim, fazendo já aqui o meu disclaimer, o meu voto foi para Marcelo Rebelo de Sousa. Por duas razões: 1- foi do meu entendimento que havia uma enorme falta de qualidade entre os restantes candidatos; 2- considerei que Marcelo, dentro das circunstâncias do momento, tinha condições para fazer um segundo mandato bem mais aproximado das minhas expectativas que, enquanto eleitor de Direita, tinha e tenho. E se houve momentos em que o seu primeiro mandato me desencantou, serei justo e assumo que vejo o seu segundo mandato com olhos de esperança. Passando, então, precisamente para este ponto: o que pode ser e o que pode significar o segundo mandato de Marcelo?

               O que pode ser e o que pode significar unem-se em torno do aproveitamento que a Direita pode fazer disso mesmo. Isto porque: será de universal consideração que Marcelo sai reforçado. Os poderes presidenciais são os mesmos, é certo, mas as circunstâncias mudam: 1- Marcelo vê a sua legitimidade direta e popular a obter resultados históricos, visto que foi o candidato mais votado em todos os concelhos do país. Do mesmo modo, um fator importante é tudo isto acontecer quando Marcelo afirmou, assertivamente, durante os debates televisivos, ser de Direita; 2- o partido do Governo, o PS, não foi capaz de, ativamente, promover esta sua candidatura, sob pena de alargar uma fragmentação interna, dada a candidatura de Ana Gomes e os nomes de algum relevo que esta ainda conseguiu aproximar da sua candidatura; 3- como ponto de extrema importância, o segundo mandato de Marcelo é o último mandato de Marcelo. O próprio Presidente já disse que mesmo mudando as circunstâncias, “a pessoa não muda”. Prestando atenção, novamente, aos debates televisivos de Marcelo, percebemos as vezes que Marcelo se tentou descolar da ação governativa deste Governo. Este pode ser um indício do seu comportamento para o segundo mandato a iniciar. Ou não. Independentemente disso, a Direita só pode ter a ganhar com a reeleição de Marcelo. Aqui, entra a dinâmica daquilo que esta pode significar. É certo que Marcelo defendeu a importância deste Governo chegar até ao final da sua legislatura. E ainda que se possa considerar sobre com que condições permanecerá este Governo em poder – e concordo que este Governo não tinha condições para continuar, dada a quantidade de casos e mais casos que andam à sua volta, mas sabemos da impunidade do PS nestas matérias – a Direita não teria nada em ganhar caso fossem convocadas eleições antecipadas. Neste momento, todas as sondagens indicam para resultados fracos dos partidos de Direita (com exceção dos partidos recentes que têm vindo a crescer) e até um possível fortalecimento do partido do Governo – uma dica: não são “gritos” contra quem trabalha as sondagens que vai fazer melhorar a situação. Desta forma, segurar o atual Governo até ao fim da legislatura é: 1- de facto, impedir uma possível crise política, fora do tempo determinado das eleições, ainda para mais, com o combate à pandemia; 2- numa perspetiva claramente oportunista (mas desengane-se quem pensa que a política funciona de outra forma), segurar o Governo até 2023 significa que, inevitavelmente, é este Governo que vai ter de lidar com as consequências económicas e sociais causadas pela pandemia. Até então, será esperado que toda a população esteja vacinada, logo, o foco político terá de ser a recuperação do país. E quando já circulam notícias que referem que a almofada financeira do Estado português se encontra nos mesmos níveis que no tempo da Troika… então, sabemos que, em frente, teremos um enorme desafio. Tudo isto poderá ter consequências no próprio mandato de Marcelo, que não se deverá querer associar a medidas políticas que possam agravar o estado atual e futuro da situação. Se assim for, a Direita terá em mãos uma nova oportunidade de ganhar a vida que lhe tem faltado – idealmente, tal resultará na possibilidade de se desenvolver uma estratégia sólida e credível, que também tem faltado. Ainda que as circunstâncias nacionais venham a ser absolutamente terríveis, sabemos que estes ciclos podem ser acompanhados de tempos de mudança política.

               Concluo, portanto: a vitória de Marcelo pode significar numa oportunidade para a reorganização tão esperada da Direita. Não é a solução para todos os males, no entanto. E continuará longe de o ser. Não obstante, é, sem dúvida, a solução que mais pode agradar à Direita. Mas em vez de se esperar por um herói que ainda não veio, talvez se possa, paulatinamente, começar a aproveitar aquilo que se tem.

 

 

Filipe S. Fernandes

O voto silencioso

09.01.21

Chega a casa exausto depois de um dia de trabalho, nunca sossegado com a possiblidade de ficar  desempregado devido à crise económica promovida pela pandemia. Durante o caminho para casa tinha recebido uma chamada da mãe idosa, que não viu no Natal e vivia longe do centro da cidade a pedir boleia, alegando não ter transporte do hospital para ir à "consulta do coração", adiada infinitamente pois primeiro não havia consultas mais cedo, depois não era seguro ir ao hospital e continuava a não haver consultas. Aborrecido com o dia, senta-se com a filha a fazer os trabalhos de casa, nota que ultimamente o aproveitamento escolar da pequena tem vindo a piorar. Há uns tempos, a professora, muito bem cotada pelos seus 40 anos de carreira, “meteu baixa” meses antes de ter idade para se reformar e a turma após um mês sem docente recebeu um substituto, que entrou na faculdade sem saber matemática e mal se formou, na sua inexperiência de inicio de carreira, teve de lidar com uma turma de 30 crianças, prejudicadas pelo ensino à distância e pela distância social, cada vez maior em todos os dominios da palavra.

 

Ao jantar, a esposa relembrava que tinham de comprar um forno novo, era mais uma despesa para ser liquidada em prestações, ao menos ainda sobrava dinheiro do seu salário liquido para pagar as despesas fixas mensais, mas não para mais. A televisão ligada como barulho de fundo contava mais uma história de um pedófilo a quem tinha sido aplicada uma pena desproporcional ao crime, olhou para a sua filha e o coração ficou pequenino, desejou que todos os seres desumanos fossem eternamente presos para salvaguardar a vida de quem mais amava. A encerrar o telejornal, era anunciada pena suspensa, mais uma, para alguém que jogou com as amizades e influências certas e abusou do poder, roubando milhares de euros aos contribuintes, a impotência fervilhou e desligou a televisão.

 

No dia seguinte acordou cedo, deixou a filha na escola, não sem antes verificar que a criança não deixava a manta e as luvas no carro, e foi trabalhar. No fim da reunião daquela manhã, em que metade dos funcionários estavam presentes virtualmente, o assunto foi um dos debates presidenciais da noite anterior. A discussão que se iniciou com um “vocês viram aquele mal-educado ontem?” decorreu com os ânimos e a profundidade dignos de um jogo de futebol, nesta troca de opiniões uns exclamavam “ele não quer saber da justiça social, é um terrorista para a humanidade”,  ao que outros, num tom cauteloso, respondiam “eu compreendo, mas ele diz algumas verdades” que por sua vez, eram completados por desejos como “gostava que houvesse um candidato de direita como ele, mas à séria”  que eram respondidos com gritos como “ai não sabia que eras fascista...” rebatidos com “...ao menos não sou comunista”. A opinião popular parecia indicar um vencedor dos debates diferente da dos especialistas.

 

No seu canto permaneceu calado, tinha se habituado a não comentar politica, sempre que se assumia à direita uma onda de insultos, acusações de fascismo e saudosismo de Salazar engoliam qualquer argumento económico e social que tivesse para dar, era mais um derrotado pela espiral do silêncio, mais um indiretamente censurado por quem se diz democrático. Foi então ver a gravação do debate discutido, ficou supreendido porque para ele assitir alguém a assumir-se tão abertamente de direita era libertador. No café do fundo da rua, um outro português sentia a mesma a mesma libertação em ouvir alguém falar da possibilidade de impor restrições à liberdade reprodutiva de cada um, as cortinas da moralidade e ética que o saber estar em sociedade tinha criado, estavam a ser rasgadas. A mensagem era passada de forma ambígua, para que em todos os nichos da sociedade encontrasse um receptor. O rancor e o sentimento de injustiça, diminuíram a capacidade de ouvir o contraditório, o cansaço e o desânimo ocultaram as respostas das alternativas e mesmo os sinais de perigo, como a vontade de um regime presidencialista, tão vulnerável para aspirantes a ditadores, ou promessas de reformas civilizacionais, que desrespeitam a liberdade de ser, passam despercebidos perante tantas menções às preocupações e discordâncias diárias. Pensar num país como um todo e prever consequências não está ao alcance do conhecimento geral e a impaciência descontente, mais que legitima, exige reconhecimento dos problemas e resoluções rápidas para os mesmos.

 

No fim, uma ideia persistia na cabeça deste eleitor: tinha sido sempre um português de bem. Respeitava a lei, estudou e licenciou-se, pagava a sua casa e as suas contas com o ordenado que ganhava pelo seu trabalho, contribuía para o estado social.  Mesmo assim, fazendo tudo o que lhe competia, sentia que o estado falhava à nação, a direita não se impunha economicamente e perdia as causas sem ideologia para a esquerda, o centro estava confuso, parecia não existir espaço para moderados e tudo parecia ser feito e falado de políticos para políticos, não encontrava na equação o povo, numa opinião liderada por intelectuais.

 

O eleitor silencioso não fez comentários no Facebook, não foi para os cafés brindar palavras, não entrou em discussões com a família e amigos... Mas no boletim de voto sussurrou um chega.

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Francisca de Figueiredo

Breve reflexão sobre Belém - Parte II

29.12.20

No passado mês de março, debrucei-me sobre as eleições presidenciais de 2021. Ainda que estivesse a vários meses do momento eleitoral, compreendi que alguns cenários (para tempo ainda de campanha) se estavam a afigurar. À data, André Ventura era o único cidadão que havia oficializado a sua candidatura presidencial, mesmo que os rumores de uma “chegada à frente” de Ana Gomes se começassem a espalhar, assim como o cenário que me pareceu sempre inevitável, em torno de uma recandidatura do Professor Marcelo Rebelo de Sousa. O objetivo deste texto passa por dar continuidade a esse mesmo texto de março, “Breve Reflexão sobre Belém”, analisando o cenário atual, em sequência daquele que antevi.

Então, volvidos 9 meses, chegamos a dezembro e estes confirmaram-se mesmo como os principais candidatos a Belém: Marcelo Rebelo de Sousa, Ana Gomes e André Ventura. Juntamente a estes, apresentam-se Marisa Matias, João Ferreira, Tiago Mayan e Vitorino Silva. Assim, analisarei primeiro as candidaturas de Marcelo Rebelo de Sousa, Ana Gomes e André Ventura.

O atual Presidente da República foi bastante demorado na apresentação da sua recandidatura. A braços com o Estado em “modo de combate” à pandemia do COVID-19, Marcelo Rebelo de Sousa quebrou o impasse no início deste mês de dezembro, anunciando a sua recandidatura. Com o atual panorama nacional, a sua candidatura tem sido bastante calma (até quase ausente). Esta recandidatura foi vista com bastante naturalidade, e a sua vitória também se avizinha, com percentagens, possivelmente, na casa dos 60%, dada a mobilização em seu apoio por parte do eleitorado do PSD, PS e ainda CDS-PP (ainda que nenhum partido vá conseguir mobilizar-se como um todo para qualquer candidatura). Numa campanha extremamente atípica, Marcelo ganha ao não participar muito ativamente enquanto candidato, permanecendo apenas no papel de Chefe de Estado, ao passo que os órgãos de comunicação social atribuem, como seria de esperar, enorme atenção ao Covid, ainda para mais, com o início do período de vacinação já em curso. Isto permitirá a Marcelo manter a sua imagem num novo período de esperança. Além do mais, também beneficia com o facto dos restantes principais candidatos (principais, mas ainda que bastante afastados nas sondagens), nomeadamente, Ana Gomes e André Ventura, serem indivíduos controversos e sem capacidade de unificar. Estes tentam ganhar tempo de antena para as suas campanhas, mas as suas declarações e os seus posicionamentos tendem a não os fazer capitalizar sobre qualquer ausência de Marcelo – nas eleições presidenciais, a moderação do candidato (ainda) assume uma importância elevada.

Quanto a André Ventura, penso que o seu resultado eleitoral poderá não refletir com exatidão algum futuro resultado eleitoral do Chega!, em termos de eleições legislativas. Isto por uma razão simples: sendo óbvio que Ventura conseguirá obter um resultado bastante superior àquele que o Chega! obteve nas eleições legislativas de 2019, e sendo igualmente óbvio que este partido tem uma total personalização da figura do seu líder, não deixa de ser verdade que, em comparação, a Direita poderá estar mais “despida” nas eleições presidenciais do que nas eleições legislativas.  Ao não se verificar uma outra alternativa forte  à Direita de Marcelo, André Ventura poderia ter um trunfo, assente numa sua eventual moderação (pelo menos, seria o momento eleitoral ideal para tal), de forma a capitalizar sobre o possível descontentamento por parte de algum desse eleitorado, perante o mandato de Marcelo Rebelo de Sousa. No entanto, ofuscado também pela pandemia, Ventura não conseguiu conquistar todo o espaço mediático que conseguiria obter, e tal também terá algumas repercussões, dada a ainda grande importância do foco televisivo.

A candidatura de Ana Gomes surgiu de forma controversa, e assim tem seguido. Mesmo não conseguindo mobilizar apoio da maior parte da ala moderada do Partido Socialista, nem tampouco da maior parte dos seus militantes, Ana Gomes decidiu avançar. Havia recuperado muito protagonismo com o seu comentário político televisivo (e Marcelo marcou aqui uma tendência que parece já se começar a afigurar até para as eleições de 2026), do qual não abdicou – o que, francamente, lhe confere uma vantagem desleal para com os outros candidatos, enquanto coloca em causa toda a razão ser de um bom espaço de comentário político. De outra forma, à semelhança de Ventura, acabaria por ter menos “palco” que aquele que esperaria. Ana Gomes não conseguiu surgir como uma figura capaz de promover maior união na Esquerda - quer pela habitual fragmentação da mesma nas eleições presidenciais, quer pelo interesse que parte da sua própria família política também terá na eventual reeleição de Marcelo. Em cima disto, Ana Gomes decidiu fazer de Ventura o seu principal visado, o que fez com que as suas possibilidades de vitória fossem ainda menores. Isto representa uma má estratégia eleitoral, visto que seria plausível considerar que Ana Gomes e Ventura disputariam algum eleitorado que, possivelmente ideologicamente indefinido, poderia ser movido por insatisfação com Marcelo. Se é certo que, assim sendo, faria todo o sentido atacar Ventura, tal já não se justifica quando toma as proporções que Ana Gomes decidiu dar. Deixa de ser plausível conquistar votos dos “desencantados” com Marcelo, se Marcelo não for o seu principal visado. Além disso, a política é feita através da definição de patamares. Quanto menor e menos ambicioso for o patamar escolhido para combater politicamente, menor poderá também ser o destaque dado, mesmo a alguém com lugar assegurado nas televisões nacionais. Além disso, os próprios ataques de Ana Gomes são, francamente, infelizes, permitindo um maior ataque à própria candidata do que àqueles que ela tenta atacar. Ana Gomes decidiu fazer de um dos seus pontos de campanha algo que não é da competência do Presidente da República e, inclusive, representa um atropelo ao princípio da separação de poderes. Não é estrategicamente inteligente avançar com soundbites sobre propor a ilegalização do Chega, quando o seu principal adversário, que deveria ser Marcelo, permite uma disputa de votos entre Gomes e Ventura. Isto porque: é plausível que Ana Gomes competisse por algum eleitorado contra Ventura, dado o seu foco ao tema da corrupção, comummente realizado também por André Ventura. Ao colocar uma posição tão vincada - e que, repito, se sobrepõe a uma prática democrática importante – sobre um tema que não era essencial para esta campanha, Ana Gomes acaba por alienar a parte do eleitorado que deveria chamar a si.

Algo que não antevi no texto que serve como ponto inicial para este, é relativo aos restantes candidatos que se viriam a oficializar. Assim, incluirei uma breve reflexão sobre estes:

Incluirei Marisa Matias e João Ferreira no mesmo espaço, de forma a fazer considerações finais que se adequam aos dois. Marisa Matias assume-se já como uma quase crónica candidata a Belém, mas que aparenta apresentar algumas dificuldades em definir-se ideologicamente, como se tal estivesse sequer em cima da mesa, o que, provavelmente, mais demonstrará falta de estratégia eleitoral, do que propriamente alguma verdadeira ambiguidade ideológica sua. Esta candidatura peca por isso mesmo, visto que parte do seu possível eleitorado acaba por poder ser aliciado por Ana Gomes, deixando Marisa Matias sem grande espaço de manobra; por sua vez, João Ferreira representa uma melhoria em termos de seleção de candidatos do PCP, face à escolha de 2016. Ainda assim, João Ferreira não pode ser visto como um bom candidato, dado o seu pouquíssimo protagonismo em termos de política nacional. A sua inexperiência, aos olhos da Opinião Pública, não representa qualquer tipo de “vantagem” para o cargo de Chefe de Estado – a título de curiosidade, no texto a que me refiro desde o início, abordei, precisamente, alguma possibilidade de movimentação por parte do PCP, lançando o nome de Jerónimo de Sousa, numa espécie de “última batalha”, assumindo que o secretário-geral comunista deixaria o seu posto partidário em 2021. Tal não aconteceu, como nos relembramos do último congresso do PCP; Por fim, a nota final em torno de Marisa Matias e João Ferreira: ambos são eurodeputados desde 2009, significando que estão afastados dos palcos nacionais há mais de uma década. Ora, sabendo que, muitas vezes, os lugares candidatos ao Parlamento Europeu são vistos como um “mal menor” (dada a natureza das eleições europeias serem de segunda ordem), não me parece sequer justificável que seja daqui que surjam as escolhas para candidaturas presidenciais.

Pela primeira vez, teremos um candidato presidencial apoiado pela IL. Parece-me uma boa estratégia (em termos do seu projeto) dar a conhecer novos e variados atores políticos que defendam a mensagem deste partido, que ainda está em fase de desenvolvimento e maturação. Desta forma, mesmo que até pudesse não corresponder à realidade, a perceção geral será de um projeto em constante crescimento, dada a continuidade de caras novas a serem apresentadas nos diferentes momentos eleitorais. Tiago Mayan foi, assim, a escolha. No entanto, dar a conhecer um indivíduo quase que a partir da “estaca zero” pode ser trabalho árduo e pouco frutífero (salvo algum fenómeno inexplicável que possa acontecer). Além do mais, ainda que o rótulo de “não-político” possa ser tentador, nestes tempos que correm, a falta de experiência política também não representa, por si mesma, qualquer tipo de vantagem.

Por fim, em relação aos candidatos presidenciais, deixarei uma breve nota sobre a candidatura de Vitorino Silva: mesmo podendo ser uma candidatura de difícil reconhecimento (seja nos parâmetros que cada um quiser utilizar), a verdade é que, excluir este candidato dos debates televisivos seria/será um tiro nos pés, por parte dos órgãos de comunicação social. Certo que estes também fazem o seu trabalho de forma a conjugar aquilo que seja do interesse público, aquilo que eles compreendam ser mais “noticiável” e com aquilo que seja mais proveitoso para o seu modelo de negócio. Não vejo mal nisso. No entanto, penso que, se o objetivo for fazer um trabalho realmente prestável e sério em termos jornalísticos, não se deve escolher quem entra ou não nos debates. Os candidatos devem conseguir ter oportunidade de se dirigirem aos eleitores. E estes que retirem as suas ilações e que atribuam mais atenção aos que assim entenderem. A partir daí, nada a apontar.

Concluo este texto, referindo que, pessoalmente, estas eleições presidenciais não têm sido, minimamente, entusiasmantes. Certo que a realidade relacionada com o Covid ofusca aquilo que poderia ser o destaque a estas eleições – francamente, com este leque de candidatos, também não me parece, minimamente, que mais atenção mediática fosse resultar em maior qualidade (aí, o defeito está mesmo nos candidatos) - e que ainda teremos vários debates presidenciais ao longo do mês de janeiro. No entanto, a vitória de Marcelo Rebelo de Sousa é inquestionável (salvo outro tipo de fenómeno inexplicável) e, de resto, entre candidatos com alto pendor de populismo e candidatos cuja relevância política é, no mínimo, questionável, fica o desalento.

 

Filipe S. Fernandes

Contradições e silêncios à esquerda

30.11.20

Esta última semana terá sido especialmente difícil para muitos internautas de esquerda que, aproveitando o confinamento, se recolheram e silenciaram mais do que o necessário, contrariando a habitual e engenhosa agitação das redes sociais em que são especialistas. Vários episódios aconteceram nestes dias que, fossem outros os protagonistas, teriam originado rios de críticas, partilhas e vexames (muitas vezes cheiíssimos de razão).

1 – Terá sido certamente perturbante para essa militância cibernética ver a rápida necessidade sentida pelo Partido Socialista de um apoio tão intragável como o da direita radical e populista para um tema de alto calibre como o de mais uma transferência para o Novo Banco. Não foi uma negociação ou conversa às escondidas, nem sequer foi preciso um papel (ideias desventuradas da direita nos Açores); o diálogo com aquele deputado fez-se a centímetros de distância, em pleno parlamento, com as câmaras de televisão em direto a relatar-nos a reunião. Não quero aqui entrar no debate sobre a legitimidade de falar com certos deputados ou partidos, tendo essa responsabilidade como governante ou não. O que aponto é a contradição entre o que se diz e o que se faz. Como justificam esta negociação, esta conversa, os que convictamente afirmaram “nunca negociar nada” com aquele partido? “Nunca” e “nada” são palavras demasiado fortes e taxativas na vida em geral, mas em política ganham outra dimensão.

2 – A esquerda viral que efusivamente defendia a decisão benévola e salvadora de sustentar a TAP silencia-se ou contradiz-se agora sobre os cortes salariais, a redução de rotas e a extinção de mais de 1800 postos de trabalho (em plena pandemia!). Onde andam as marionetas políticas que tão bem servem o Twitter quando vemos governantes e dirigentes partidários legitimarem estas opções, quando os próprios, a começar pelo ministro que o disse explicitamente, tinham afirmado que o salvamento da companhia seria precisamente para assegurar esses empregos? A crítica à contradição e ao silêncio vai também além redes sociais: António Pedro Vasconcelos, com o “movimento Não TAP os Olhos”, teve coragem, recursos e palco para apresentar uma queixa-crime contra a “gestão danosa” de Passos Coelho na TAP, mas agora nada diz sobre o que se passa na companhia (notar que APV até exigiu um pedido de desculpas do anterior PM e a sua queixa-crime foi desconsiderada pelo Ministério Público)! Mais do que os olhos TAPados, APV e boa parte da esquerda têm agora também os ouvidos e a boca TAPadas – e não é que os Estados de Emergência estejam a coartar a liberdade de expressão… Mais uma vez, não me refiro ao ato em si, à reestruturação, à dimensão e ao plano para a TAP, mas sim à contradição evidente entre o que antes foi apregoado e justificado e o que agora se quer levar avante.

3 – Falando em avante, espaço agora para as novas escolhas do PCP (novas q.b.). É habitual ver nas redes sociais quem, por ofício aparelhista e por caça aos likes e retweets – ser embaixador das coisas boas é sempre agradável –, critique os partidos de direita e outras instituições pelo facto de várias vezes terem painéis, eventos ou órgãos compostos sem a devida paridade ou sequer representação feminina. A contradição da esquerda aqui, praticada pelo silêncio, é dos que absolutamente nada dizem sobre a pouca representação de mulheres nos órgãos eleitos do PCP. A minha crítica não vai para o PCP, pois este é contra as quotas, numa justificação sinceramente compreensível, logo o partido está a ser coerente. Mas não choca ninguém que, em 2020, apesar de o PCP ter 32% de militantes mulheres, elas só representem 27% do Comité Central e só 12,5% da Comissão Política!? Há mais Joões (4) do que mulheres (3) na Comissão Política do PCP! Como é que isto não merece um comentário dos que sempre denunciam qualquer falha de representatividade noutras situações e no outro espetro político? Até agora, não vi nada de quem esperava ver, seguissem a coerência.

4 – Por último, há um silêncio quase geral e umas declarações ziguezagueantes sobre a posição de Portugal quanto ao mecanismo de defesa do Estado de Direito, rejeitado pela Hungria e Polónia. Não há até agora explicação e esclarecimento suficientes sobre a notícia do Público que dá conta de posturas contraditórias de Portugal dentro e fora de portas, sejam já de há mais tempo ou não. Uma coisa sabemos: em julho, o PM afirmou, depois de uma visita à Hungria para se encontrar com Órban, que a atribuição dos fundos do plano de recuperação económica da UE não deve estar dependente do respeito pelo Estado de Direito. Não discuto aqui se se deve ou não fazer depender uma coisa da outra ou, se por outro lado, é preferível com os mecanismos próprios e em sede própria sancionar a atuação atentatória ao Estado de Direito praticada por Hungria e Polónia (nota: Espanha passa pelos pingos da chuva nesta questão; um país à beira de ter o Conselho Geral do Poder Judicial controlado pelo Governo… de esquerda, o que parece automaticamente valer menos escrutínio e crítica). Dos quatro assuntos, este é aquele que despertou mais a esquerda, mas em muito menor dimensão da que se imaginaria se o governo fosse outro. Os iliberalismos não podem só ser maus quando na foto também está o centro-direita e não se deve deixar de beliscar aqueles que, sendo de esquerda, seriam fortemente criticados se por acaso não o fossem. 

Marco António

Imagem de Joan Cornellà

Art by Joan Cornellà

Mais um fim precoce para o populismo americano.

09.11.20

Trump perdeu as eleições americanas. De forma inequívoca, por mais que ele não admita, tendo entregue a Biden os estados do Midwest de blue-color voters que outrora foram a génese do partido democrata. Os mesmos estados que Bill Clinton ganhou em ’92 e ’96; e que Obama ganhou em 2008, tendo sido perdidos para Trump em 2016.

Mais importante que ter expulsado Donald J. Trump da presidência é garantir que alguém com a mesma mensagem não volta lá a entrar, — nem mesmo ele —, e não há melhor forma de o fazer do que analisar a história americana à procura de pistas.

Contudo, e em primeiro lugar, convém deixar claro que o populismo americano não pode ser amalgamado com um. O mesmo barco que senta contiguamente o Bernie Sanders e o Occupy Wall Street, com o Trump e o Tea Party, é precisamente um que tem uma ala direita e uma ala esquerda, que se alimentam mutuamente, que têm similaridades, mas com ideologias díspares.

Um traço comum a estas duas é o reconhecimento de que o sistema capitalista e de mercados não está a funcionar para todos, com soluções dissemelhantes. O populismo de direita culpa o globalismo, no sentido em que o foco se retirou do nacionalismo e de “America first”, para solucionar os problemas de outros países. O de esquerda culpa também o globalismo, mas num sentido mais abrangente, onde considera que o sistema económico global serve os interesses de corporações e deixa “workers last”.

Outra característica consonante é a de fundir os americanos como um, “The People”, certos de que o eleitorado é monolítico, tem os mesmos problemas e preocupações, e que só esses são votáveis. Se por acaso o governo ou os outros partidos não seguirem a vontade do “povo”, torna-se óbvio que foram corrompidos por elites e interesses, sejam eles quais forem.

O populismo americano tem a sua génese em 1849, com os Know Nothings, o primeiro movimento populista de direita estabelecido. Estes perseguiam católicos e imigrantes, tentando instituir uma maioria cristã e branca, usando a perseguição de minorias como forma de afirmar poder. Eventualmente o partido diluiu-se no esquecimento, e vários dos seus membros saltaram para o partido republicano.

No caso do populismo de esquerda, temos em Huey Long um bom exemplo do quão feio também consegue ser. A sua retórica de “eat the rich”, — ainda hoje em dia replicada por progressistas nos EUA —, fê-lo ser considerado em tempos o novo Robin Hood das classes mais baixas. A sua mensagem tinha como alvo a classe média americana, que num mundo em transformação achava a sua forma de viver ameaçada, e tocou nesse medo profundo na forma retorcida de culpar “banqueiros judeus”, — símbolo antissemita também utilizado por Hitler —, e “burocratas de Washington”. Foi considerado um sério oponente à candidatura de Franklin Delano Roosevelt em 1936, tendo sido morto por um médico, Carl Weiss, num bizarro acontecimento.

É premente denotar que devido à cultura americana extremamente pró-mercados, caindo preferencialmente no primeiro prato da balança Liberdade vs Igualdade, e a uma história ainda não retificada de discriminação sistémica, nomeadamente racial, a probabilidade de um movimento populista de direita sair vitorioso contra um de esquerda é significativamente maior. Basta comparar dois movimentos, o Ocupy Wall Street e o Tea Party, sendo que o primeiro fez um grande alarido ao início, e perdeu força; e o segundo conseguiu eleger republicanos com essa agenda, e inclusivamente formar o Freedom Caucus.

Existe nos Estados Unidos uma ferida económica no seio da classe média. Milhares de empregos no Midwest estão a ser automatizados. Ter uma casa própria, algo que deveria custar em média 2.6 anos de rendimento familiar, chega a custar 10 vezes isso em algumas cidades americanas. Esta é a primeira geração que se espera que viva pior que os seus pais. Enquanto isto, os mercados galopam a toda a força, e é dito que a economia está estrondosa. Até este medo e realidade serem confrontados tanto por Democratas como Republicanos moderados, é esperado que o debate esteja entregue aos extremos, e o Trumpismo não morre, não morrerá, e aliás, só se espera que cresça.

 

 

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no source founded

Todos os orçamentos são infelizes à sua maneira, apenas uns mais que outros.

27.10.20

Escrevo este texto sem saber o que é mais deprimente: constatar que o OE dominar de forma tão magnânima o ciclo noticioso é sintomático do quão pequeninos e pobres somos, e permanecemos; ou ter de escrever sobre as inerências da relação tóxica entre os nossos partidos de esquerda.

O Orçamento entregue na Assembleia não é nada mais que um sonho para qualquer esquerdista. Aumento do salário mínimo nacional, aumento das pensões, subsídio de risco para os profissionais de saúde e um novo apoio social para trabalhadores independentes e desempregados sem cobertura. Mesmo assim, os partidos à esquerda do PS não quiseram nada com este; tendo o BE anunciado votar contra, o PCP e o PEV vão-se abster cobardemente, o PAN anda por lá a fingir que é um partido sério, e as duas deputadas não inscritas decidiram sair do modo off e ficar em stand-by na abstenção.

De facto, têm sido umas semanas de palavras e chavões em vão, em que o PCP cripticamente não anunciou o sentido de voto que toda a gente já conhecia; o PAN fingiu que andou a negociar reivindicações já acordadas no passado e que não foram cumpridas; o PS incorreu em coçar a cabeça porque não queria governar em duodécimos; e o PSD amesquinhou-se, declarando com um pontapé no chão, e depois de retirar uma chupeta de borracha da boca, que só voltaria a negociar depois de um pedido de desculpas.

De planos da direita para o país, estamos conversados, já que o contributo do Dr. Rui Rio para o debate foi anunciar que discordava do aumento do salário mínimo, e bem, embora tenha passando ao largo a falta de apoios às empresas, descida do IVA, e isenções fiscais para as famílias.

O caso mais interessante para análise é o sentido de voto do Bloco de Esquerda. A sua grande dor de cabeça é o Novo Banco. Desde 2017, foram emprestados 6030 milhões pelo Estado ao Fundo de Resolução, com uma taxa de juro igual à da dívida pública portuguesa a cinco anos, — que mesmo contando com o spread de 0,15% — , fica em valores negativos. O Bloco aprovou os Orçamentos de 2017, 2018 e 2019, tendo-se abstido no de 2020, que levou a uma viabilização do mesmo.

É particularmente de rir a justificação do Bloco para o sentido de voto neste Orçamento ser diametralmente oposto ao que já nos habituou. Era absolutamente impossível aprovarem mais um cêntimo dos contribuintes para um banco falido, mas só depois do caso dos imóveis e da pasta Viriato terem sido tornado públicos. Imóveis esses, aproximadamente 5400, que não tinham qualquer hipótese de ser vendidos parte a parte, principalmente por serem compostos por tudo como terrenos agrícolas, casas inabitáveis, e casas ilegais. O BE senta-se confortavelmente na mentira de que só após a venda à Lone Star se registaram imparidades nas ações do Novo Banco. Na verdade, registaram-se praticamente os mesmos valores, não tendo merecido estes 1700 milhões atenção dos nossos paladinos anti-corrupção porque não assentava na narrativa, principalmente quando queriam nacionalizar o banco.

Com isto tudo, vamos ter um Orçamento aprovado. O Bloco de Esquerda não caiu na esparrela de António Costa, pronto para o esvaziar politicamente se votasse a favor, e vive para explicar as incongruências da sua justificação de voto. O PSD livra-se de ter de equacionar um Centrão, o CDS permanece vazio politicamente, e a direita no seu conjunto a deixar o debate dos meninos grandes para a esquerda, focando-se em equacionar geringonças nos Açores e em jornadas parlamentares.

 

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Nuno Fox/Lusa

 

Açores como teste

26.10.20

Na passada noite eleitoral de 25 de outubro, os resultados regionais demonstraram aquilo que já a nível nacional se verificara, nas eleições legislativas de 2019: em Portugal, o sistema partidário assume um caráter pluripartidário, transpondo esta mesma característica de forma cada vez mais acentuada para a representatividade partidárias nas assembleias legislativas. Aquilo a que me proponho fazer é levantar questões em torno do arco de governação, de forma a compreendermos as possíveis alterações àquilo que vínhamos conhecendo, e suas consequências para a formação dos governos.

               Nos Açores, o PS perdeu a maioria absoluta, que vinha sendo “sua” desde 1996. Simultaneamente, ainda que o PSD tenha crescido, a correlação entre a descida de um e a subida do outro é cada vez menos direta e linear. Novos atores têm entrado em jogo, alcançado representação parlamentar (neste caso, o Chega!, a Iniciativa Liberal e o PAN). Perante os resultados verificados, existem algumas possibilidades para o alcance de acordos que permitam a formação de uma maioria governativa, seja mais à Esquerda ou mais à Direita. Assim sendo, tanto o PS como o PSD terão de tentar conjugar interesses de modo a recolher aliados num momento crucial. Do lado do PS, o repetido (a nível nacional) pode ser tentado: de modo a impedir um governo de Direita, conseguir assegurar que os partidos que lhe são mais próximos possam assegurar a viabilidade de um governo minoritário seu, mas desta vez tentando esse acordo com BE e PAN, em vez de BE e PCP. Resta perceber se há condições de entendimento com estes atores, se o BE vai querer subir de tom nas suas reivindicações governativas (o que me parece sempre uma inevitabilidade, mais tarde ou mais cedo), e ainda se o PAN tem interesse em alinhar numa solução destas. Neste último caso, se sim, se se contentará com um papel de apoio ao governo minoritário (ainda que só se tenha conseguido fazer eleger agora) ou se tentará colocar algumas garras políticas mais ambiciosas de fora. As outras duas soluções mais plausíveis estão, a meu ver, no lado da Direita: 1) uma agregação, de facto, da Direita, em que a preocupação primordial passa a relacionar-se com a obtenção da maioria governativa e da agregação de interesses mais gerais ou 2) uma tentativa de agregação mais seletiva, ficando a depender de algumas variáveis. Passo a explicar: a primeira possibilidade é, como é claro, a agregação de todos os partidos que estão mais à Direita nesta hipotética tentativa de projeto comum: PSD, CDS, PPM, Chega e IL. Estes partidos garantiram a obtenção total de 29 mandatos, alcançando uma maioria matemática. No entanto, uma agregação deste nível não se avizinha fácil nem assim tão expectável: a peça bloqueadora ou desbloqueadora, poderá ser o Chega!. As declarações de André Ventura fecharam as portas ao envolvimento deste partido (ainda que saibamos que, na política, muitas vezes, estes tipos de declarações podem caducar no tempo equivalente a um estado de alma). Se o Chega! for retirado da equação de uma hipotética agregação de interesses, fica a questão sobre como este partido se comportará perante a possibilidade de ter de viabilizar um governo de Direita no qual não esteja inserido ou bater o pé aos tais “partidos de sistema” e rejeitar toda e qualquer alternativa, mantendo um caminho isolado no sentido de querer incorporar no Chega a única alternativa, para eles, aceitável; a segunda opção passa por tentar incluir o PAN nesta hipotética agregação, em troca com o Chega!. No entanto, esta opção (mesmo que, inclusive, pudesse fechar portas a mais um ou outro partido) ficaria sempre dependente das abstenções, no mínimo, desses mesmos partidos. Agora, a questão que coloquei face a uma possível aproximação do PAN ao PS e restante Esquerda, também vale para PSD e restante Direita: quando o momento chegar, a quem vai o PAN dar a mão? Não obstante, a resposta a esta questão parece-me ser, sem grande real dúvida, que o PAN tenderá a pender para o lado do PS. Ou seja: nestas duas hipóteses mais plausíveis, a estabilidade não parece vir a ser uma “palavra de ordem”, exigindo enorme capacidade de compromisso entre as partes direta e/ou indiretamente envolvidas. Ainda, penso haver uma restante opção, que consiste numa solução inesperada, envolvendo atores da Esquerda e da Direita, como o CDS, o BE e o PAN, simultaneamente. Ainda que estas situações devam ser sempre olhadas com “desconfiança” (no sentido de serem equacionados todos os possíveis cenários), creio que esta manobra poderia sair muito cara ao CDS, nomeadamente. Por fim, não me tendo esquecido de uma última opção, penso que o estabelecimento de um Bloco Central seria um suicídio gritante por parte do PSD, pelo que me parece absolutamente impensável que tal venha sequer a ser minimamente equacionado.

               Ora, sabemos que, aconteça o que acontecer, há duas ilações (mais e menos óbvias) que podemos retirar: 1) o poder político, nos Açores, está a ser alterado; 2) perante toda e qualquer solução final que se possa encontrar, é verdade que estas devem continuar a ser analisadas pelo prisma regional, podendo não significar algo mais para termos nacionais. Ainda assim, é curioso ver o acompanhamento que estas eleições regionais fizeram perante as últimas eleições legislativas. Do mesmo modo, acabam por lançar o mote para as eleições autárquicas do próximo ano. A meu ver, esta antevisão deve fazer os partidos soarem os seus alarmes, na medida em que devem estar preparados para reagir face a possíveis impasses, originados por fragmentações como esta.

               Uma última nota: já estamos a sentir as consequências do precedente aberto nas eleições legislativas de 2015. De repente, mesmo que o partido vencedor tenha a possibilidade de alcançar uma solução governativa, o ónus de encontrar essa solução já não se apresenta somente em si, por ter sido o vencedor eleitoral. Desta vez, o grupo dos perdedores (em termos objetivos) pode, novamente, virar a mesa.

 

                                                                       Filipe S. Fernandes